Fernand Hemsi num memorável depoimento

Transcrevo abaixo o valioso depoimento de Fernand Hemsi, tio de Débora Hemsi Cuperschmidt* que organizou e produziu a entrevista que segue. Faço meus agradecimentos a todos, extensivos ao amigo Davy Levy. Sr. Fernand Hemsi nos enriquece com suas memórias e notável elegância.

Sami Douek

“Agradeço o honroso convite de poder dar uma entrevista a seu valoroso grupo que se dedica a lembrar os últimos anos da intensa e grande comunidade judaica no Egito.

Me chamo Fernand Efraim Hemsi, 95 anos, viúvo após um feliz e belo casamento de 65 anos com Fofô.

Tenho uma filha, Corinne, e dois netos.

Tinha a idade de 31 anos quando em 1957 eu e minha esposa e meus irmãos saímos do Egito para o Brasil.

Morávamos na cidade de Alexandria desde 1932, quando chegamos (meus pais, três irmãos, uma irmã e eu com 6 anos) da Turquia, a convite do meu tio para o meu pai gerenciar uma indústria de beneficiamento de arroz de sua propriedade.

A nossa vida no Egito desde 1932 até 1957 (25 anos), a não ser em poucos anos, foi muito agradável, tranquila e feliz.

Foi uma vida repleta de boas lembranças desde a minha infância, juventude e vida adulta durante 8 anos de casado. Vivíamos num país onde não existia discriminação étnica ou racial (me lembro que em 1946 ou 1947 foi convidada pela Yugoslavia a equipe de Basket Ball egípcia para um jogo amistoso...a equipe egípcia era formada por jogadores egípcios e dois judeus do clube Hakoach se me lembro bem. Os nossos amigos eram tanto judeus como egípcios, gregos ou libaneses maronitas, convivendo socialmente muito bem. Não havia problemas de inflaçao e nossos empregos eram tranquilos e duradouros.

Como judeus, minha esposa e eu e amigos frequentamos o clube Maccabi, regularmente participando de suas atividades culturais e social, sempre convidando os nossos amigos egípcios ou cristãos a participar de nossos eventos, reciprocamente.

Em Alexandria tivemos uma vida cultural intensa, assistindo em nosso Theatro (Mohamed Ali) e sala de concertos os melhores grupos de teatro, balés, famosos cantores, orquestras.

Ficou marcado na minha memoria o dia de 1938 (tinha 12 anos), em que a minha irmã me levou para assistir no theatro Mohamed Ali a orquestra filarmônica da Palestina formada na maioria por solistas e músicos salvos por Wadislau Hubermann, famoso violonista da Alemanha nazista. (orquestra que em 1948 mudou o nome para a atual Filarmônica de Israel). Contar toda uma vida repleta de dias felizes e menos bons no final daria para escrever um livro, o que alguns ja fizeram muito bem.

Historicamente posso lembrar a

nossa vida que saiu da tranquilidade e calma quando o Egito (sob controle britânico) participou diretamente da segunda guerra mundial, entre 1939 e 1945, e que vivenciei plenamente. Foram anos bem tensos; Alexandria, como base Naval, era submetida a bombardeios pela Lutwafe Alemã, especiamente em noites de lua cheia, culminando em 1942 quando as forças da Africa Corp Alemã comandadas pelo famoso Rommel, conseguiram chagar a uns 100 kms de Alexandria, fazendo com que a grande maioria de civis se refugiasse no Cairo e as forças inglesas se preparassem para se retirar, para poder tentar defender o Canal de Suez. Foram dias difíceis até que com a ajuda maciça dos Estados

Unidos em armamentos, da Austrália, de forças neozelandesas (os terríveis maoris) e até uma "jewish brigade" formada por judeus da Palestina, sob comando do General Montgomery, conseguiram, na Batalha de El Alamein, derrotar os alemães, salvando o Egito e a todos nós de um destino funesto. Nesses mesmos meses as forças russas tinham vencido a Batalha de Stalingrado.

Me lembro da famosa frase de Churchill: "Antes de El Alamein e Stalingrad somente sofremos derrotas e após El Alamein e Stalingrad somente tivemos vitorias".

Os anos depois da guerra, entre 1945 e 1952, voltamos a viver dias bons de tranquilidade, desfrutando bem a não ser em 1948 quando o Egito, sob o Rei Farouk e quatro exércitos árabes tentaram pôr fim ao recém-criado Estado de Israel. Felizmente sem conseguir e sofrendo grandes derrotas, além de marcar o início do fim da realeza em 1952, quando o rei foi acusado como responsável pela derrota pelos oficiais das Forças Armadas.

Em 1952, o Rei Farouk foi obrigado por um grupo de jovens oficiais a abdicar e se exilar com os seus bens e família na Itália. Foi declarado o fim da realeza e até 1954 o Egito foi liderado pelo general Naguib, figura bastante popular e moderada, tolerante, chegando até a aparecer no dia de Kipur na grande

sinagoga do Cairo se me lembro bem.

Mas logo após o General Naguib foi derrubado e colocado em prisão domiciliar por Nasser, que assumiu o infeliz destino do país, selando também o destino da grande comunidade judaica, que sofreu vários atentados, perseguições e prisões até 1956, quando a Inglaterra, França e Israel atacaram o Egito, que tinha nacionalizado a companhia do canal de Suez... e o que veio a seguir é história...”

*(Créditos à Fernand Hemsi em dezembro de 2020)